A elite está na moda. Na fábula mil  vezes repetida por Lula, todo o mal provém da “elite que governa este país há  500 anos”, embora ele mesmo se apresente como herdeiro de uma suposta linhagem  na qual reluzem as figuras de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jango  Goulart. Na frase de um sociólogo americano que se dedica a defender a divisão  legal das sociedades em grupos raciais, trata-se de uma “elite branca”,  possivelmente derivada, em linha direta, dos proprietários de escravos de  antanho. No discurso dos intelectuais que se imaginam “orgânicos”, há uma  permanente “conspiração das elites” contra o governo.
Foi sob a  influência da obra póstuma de Vilfredo Pareto (1848-1923) que, nos anos 30, uma  corrente da sociologia substituiu o conceito marxista de divisão da sociedade em  classes pelo paradigma da divisão entre “elites” e “massas”. No Brasil, a  obsessão pela elite coincide com a chegada de Lula e do PT ao poder. Antes,  fiéis à linguagem marxista, os petistas invocavam os “trabalhadores”. Depois,  provavelmente sem o saber, tornaram-se “paretianos” e passaram a invocar o  “povo” ou os “pobres” - isto é, as “massas”. O discurso reinventado reflete  adequadamente a novidade de fundo: a ascensão de uma nova elite  política.
“Elite”, assim no singular, que se reproduz ao longo de  séculos, sempre igual a si mesma, só existe na matreira delinqüência intelectual  de Lula. Na sociologia existem elites políticas, econômicas, intelectuais,  religiosas. Há, sobretudo, uma “circulação das elites” - um fenômeno cujos  indícios, entre nós, abrangem o elegante declínio dos quatrocentões paulistas,  que consomem as rendas vestigiais de antigos patrimônios, a decadência ruidosa  dos usineiros nordestinos, pendurados nos favores indecorosos dos governantes de  turno, e também a configuração de uma “classe política” que faz do cargo público  uma plataforma para a ascensão social. Renan Calheiros, um homem de origem  humilde, é a ilustração mais atual deste último processo.
A dissociação  entre a elite política e a elite econômica se acentuou no Brasil após o fim do  regime militar, ainda que a segunda continue capaz de veicular seus interesses  por meio da primeira. A trajetória de Calheiros não é a exceção, mas a regra, no  Congresso Nacional. Sob esse aspecto, não há grande novidade na ascensão da nova  elite petista. Formada por indivíduos de classe média, com raízes no  sindicalismo e na universidade, essa elite adventícia pratica o tradicional  intercâmbio de poder e conexões políticas por carreira, renda e patrimônio. As  suas invectivas contra a “mídia”, que revela essas estratégias, mal escondem um  sentimento de revolta diante do que se lhes afigura como “preconceito”: afinal,  não fazem o mesmo que tantos outros, antes deles?
Elites tendem a aderir  às regras de funcionamento do sistema no qual se processou sua ascensão. A nova  elite da estrela vermelha renunciou há muito à idéia de transformação social e,  nos seus hábitos e modos, não se distingue das demais frações da elite política  brasileira, com quem está articulada na “base governista”. A sua singularidade é  pertencer ao PT, um traço distintivo com importantes repercussões.
“Certa  ou errada, é a minha pátria” - a divisa clássica dos nacionalistas,  reinterpretada pelos comunistas, produziu incontáveis abjurações: “Não se pode  estar certo contra o partido”, diziam os militantes que “retificavam” seu  pensamento e suas palavras para alinhá-los às móveis verdades do Comitê Central.  O silêncio dos petistas acusados no episódio do “mensalão” se inscreve nessa  lógica, mas tem motivações diferentes. Os velhos comunistas acreditavam que o  partido era o instrumento indispensável de salvação da humanidade; os dirigentes  e quadros petistas acreditam que só o partido pode salvar a si  próprios.
O PT é o alicerce sobre o qual se ergue a rede de relações  sociais que propicia a ascensão da nova elite política. É por meio do partido,  com sua hierarquia e suas correntes internas, que se processam as indicações  para os cargos públicos e se tecem as conexões com o mundo empresarial. No  partido se concentram as expectativas de carreira, renda, poder, prestígio e  patrimônio. Não se rompe com o partido, nem mesmo depois da expulsão, como  atesta o caso de Delúbio Soares. Em contrapartida, o partido vela pelos seus na  hora da desgraça, oferecendo-lhes demonstrações de solidariedade e legenda  eleitoral ou pelo menos advogados e ajuda financeira oculta, como atestam os  casos de José Dirceu, José Genoino e Silvio Pereira.
A denúncia oferecida  pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Sousa, ao Supremo  Tribunal Federal (STF) tem relevância histórica, pois é a primeira peça judicial  que desvenda o novo padrão de corrupção política engendrado por essa elite. As  redes de corrupção tradicionais operam ao redor de uma camarilha política  informal, que controla um segmento do aparelho de Estado. A rede do “mensalão”  operou sob a égide de uma máquina partidária centralizada, dirigida a partir do  âmago do Poder Executivo e ramificada em diversos órgãos públicos e empresas  estatais. A operação não estava a serviço do enriquecimento imediato de um grupo  de pessoas, mas da consolidação e reprodução futura da nova elite - como, usando  outras palavras, constatou Delúbio Soares em sua defesa diante da direção do PT,  na hora da expulsão inevitável.
O plenário do STF deliberará, nos  próximos dias, sobre a abertura da ação penal. Juridicamente, o que está em jogo  é a conversão em réus de 40 indivíduos, entre eles algumas figuras que conservam  acesso amplo ao núcleo do governo. Mas, no plano político, começam a ser  definidas as regras do jogo da “circulação das elites” no Brasil. Os juízes do  maior tribunal podem fazer História. Ou, alternativamente, reduzir o Judiciário  à condição de Poder subordinado.
por Demétrio Magnoli
Sociólogo e  doutor em Geografia Humana pela USP
 "Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo."
 "Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo." 
 
2 comentários:
Artigo muito lúcido.
ZEPOVO.
Artigo com teorias interessantes, mas com algumas falhas ao tentar classificar as elites. Principalmente no Brasil a evolução e auto-organização das elites se fez de maneira mais radical.
Os sociologos não percebem adquadamente o advento do PT como fenomeno social por ser um acontecimento moderno e pouco estudado, daí a fato inédito que esta sendo analizado ( não julgado ) no STF. Afinal é a primeira vez que desvio de verba publica chega ao Supremo...NOS ULTIMOS 500 ANOS !!!!
Postar um comentário